PRESENÇA JUDAICA NA LÍNGUA
PORTUGUESA
EXPRESSÕES E DIZERES POPULARES EM PORTUGUÊS
DE ORIGEM CRISTÃ-NOVA OU MARRANA
EXPRESSÕES E DIZERES POPULARES EM PORTUGUÊS
DE ORIGEM CRISTÃ-NOVA OU MARRANA
Jane
Bichmacher de Glasman (UERJ)
O objetivo do presente trabalho é apresentar alguns exemplos de
influência judaica na língua portuguesa, a partir de uma ampla pesquisa
sócio-lingüística que venho desenvolvendo há anos. A opção por judaica (e não
hebraica) deve-se a uma perspectiva filológica e histórica mais abrangente,
englobando dialetos e idiomas judaicos, como o ladino (judeu-espanhol) e o
iídiche (alemão), entre os mais conhecidos, além de vocábulos judaicos e
expressões hebraicas que passaram a integrar o vernáculo a partir de
subterfúgios e/ ou corruptelas, cuja origem remonta à bagagem cultural de
colonizadores judeus, cristãos-novos e marranos.
Há uma significativa probabilidade estatística de brasileiros
descendentes de ibéricos, principalmente portugueses, terem alguma
ancestralidade judaica. A base histórica para tal é a imigração maciça de
judeus expulsos da Espanha, em 1492, para Portugal, devido à contigüidade
geográfica e às promessas (não cumpridas) do Rei D. Manuel I, que traziam
esperança de sua sobrevivência judaica como tal. Mesmo com a expulsão de
Portugal em 1497, os judeus (além dos cristãos-novos e dos cripto-judeus ou
marranos) chegaram a constituir 20 a 25% da população local.
Sefaradim (de Sefarad, Espanha, da Península
Ibérica) procuraram refúgio em países próximos no Mediterrâneo, norte da
África, Holanda e nas recém-descobertas terras de além-mar nas Américas,
procurando escapar da Inquisição. Até hoje é controversa a origem judaica ou
criptojudaica de descobridores e colonizadores do Brasil, para onde imigraram
incontáveis cristãos-novos, alternando durante séculos uma vida como judeus
assumidos e marranos, praticando o judaísmo secretamente (fora os que
permaneceram efetivamente católicos), de acordo com os ventos políticos, sob o
domínio holandês ou a atuação da Inquisição, variando de um clima de maior
tolerância e liberdade à total intolerância e repressão.
Comparando apenas sob o ponto de vista cronológico, nem sempre
lembramos que, enquanto o Holocausto na Segunda Guerra Mundial foi tão
devastador, especialmente nos quatro anos de extermínio maciço de judeus, a
Inquisição durou séculos, pelo menos três dos cinco da história “oficial” do
Brasil, isto é, após o descobrimento. Tantos séculos de medo, denúncias,
processos e mortes, geraram, por um lado, um ambiente psicológico de terror
para os judeus e cristãos novos no Brasil; por outro, um anti-semitismo
evidente ou subliminar que permaneceu arraigado na população, inclusive como
autodefesa e proteção.
Uma característica do comportamento de cristãos-novos “suspeitos”
foi procurar ser “mais católicos do que os católicos”, buscando sobreviver à
intolerância e determinando práticas sócio-culturais e lingüísticas.
A citada alternância entre vidas assumidamente judaicas e
marranas, praticando judaísmo em segredo, com costumes variados, unificados
pela “camuflagem” de seu teor judaico, gerou comportamentos e aspectos
culturais (abrangendo rituais, superstições, ditados populares, etc.) que se
arraigaram à cultura nacional. A maioria da população desconhece que muitos
costumes e dizeres que fazem parte da cultura brasileira têm sua origem em
práticas criptojudaicas. Apresentarei alguns exemplos bem como suas origens e
explicações, a partir da origem judaica “marrana”.
“Gente da nação” é uma das denominações para designar marranos,
judeus, cristãos-novos e cripto-judeus, embora existam diferenças entre termos
e personagens.
Cristãos-novos foi denominação dada
aos judeus que se converteram em massa na Península Ibérica nos séculos XIII e
XIV; é preconceituosa devido à distinção feita entre os mesmos e os
“cristãos-velhos”, concretizado nas leis espanholas discriminatórias de “Limpieza
de Sangre” do século XV.
Criptojudeus eram os cristãos-novos
que mantiveram secretamente seu judaísmo. Gente
da nação era a expressão mais
utilizada pela Inquisição e Marranos,
como ficaram mais conhecidos. Embora todos fossem descendentes de judeus, só
poucos voltaram a sê-lo, e em países e épocas que o permitiram.
O próprio termo “marrano” possui uma etimologia
diversificada e antitética. Unterman (1992: 166), conceitua de forma
tradicional, como “nome em espanhol para judeus convertidos ao cristianismo que
se mantiveram secretamente ligados ao judaísmo. A palavra tem conotação
pejorativa” geralmente aplicada a todos os cripto-judeus, particularmente aos
de origem ibérica. Em 1391 houve uma maciça conversão forçada de judeus
espanhóis, mas a maioria dos convertidos conservou sua fé. Já Cordeiro (1994),
com base nas pesquisas de Maeso (1977), afirma que a tradução por “porco” em
espanhol tornou-se secundária diante das várias interpretações existentes na
histografia do marranismo.
Para o historiador Cecil Roth (1967), marrano, velho termo
espanhol que data do início da Idade Média que significa porco, aplicado aos
recém-convertidos (a princípio ironicamente devido à aversão judaica à carne de
porco), tornou-se um termo geral de repúdio que no século XVI se estendeu e
passou a todas as línguas da Europa ocidental.
A designação expressa a profundidade do ódio que o espanhol comum
sentia pelos conversos com quem conviviam. Seu uso constante e cotidiano
carregado de preconceito turvou o significado original do vocábulo. Em “Santa
Inquisição: terror e linguagem”, Lipiner (1977) apresenta as definições:
“Marranos: As derivações mais remotas e mais aceitáveis sugerem a origem
hebraica ou aramaica do termo. Mumar:
converso, apóstata. Da raiz hebraica mumar, acrescida do sufixo castelhano ano
derivou a forma composta mumrrano,
abreviado: Marrano. Tratar-se-ia, pois de um vocábulo hebraico acomodado às
línguas ibéricas. Marit-áyin:
aparência, ou seja, cristão apenas na aparência. Mar-anús: homem batizado à
força. Mumar-anus:
convertido à força. Contração dos dois termos hebraicos, mediante a eliminação
da primeira sílaba”. Anus,
em hebraico, significa forçado, violentado.
Antes de exemplificar a contribuição lingüística marrana, convém
ressaltar que a vinda dos portugueses para o Brasil trouxe consigo todos os
empréstimos culturais e lingüísticos que já haviam sido incorporados ao
cotidiano ibérico, desde uma época anterior à Inquisição, além de novos hábitos
e características; muitas palavras e expressões de origem hebraica foram
incorporadas ao léxico da língua portuguesa mesmo antes de os portugueses
chegarem ao Brasil. Elas encontram-se tão arraigadas em nosso idioma que muitas
vezes têm sua origem confundida como sendo árabe ou grega. Exemplo: a “azeite”,
comumente atribuída uma origem árabe por se assemelhar a um grande número de
palavras começadas por “al-” (como alface, alfarrábio, etc.), identificadas
como sendo de origem árabe por esta partícula corresponder ao artigo nesta
língua. O artigo definido hebraico é a partícula “a-” e “azeite” significa,
literalmente, em hebraico “a azeitona” (ha-zait).
Apesar da presença judaica por tantos séculos, em Portugal como no
Brasil, as perseguições resultaram também em exclusões vocabulares. A maior
parte dos hebraísmos chegou ao português por influência da linguagem religiosa,
particularmente da Igreja Católica, fazendo escala no grego e no latim
eclesiásticos, quase sempre relacionados a conceitos religiosos, exemplos: aleluia, amém, bálsamo, cabala,
éden, fariseu, hosana, jubileu, maná, messias, satanás, páscoa, querubim,
rabino, sábado, serafim e
muitos outros.
Algumas palavras adotaram outros significados, ainda que
relacionados à idéia do texto bíblico. Exemplos: babel indicando bagunça; amém passando a qualquer concordância com
desejos; aleluia usada como interjeição de alívio.
O preconceito marca palavras originárias do hebraico usadas de
forma depreciativa, como: desmazelo (de mazal – negligência, desleixo), malsim (de mashlin – delator, traidor), zote (de zot / subterrâneo, inferior, parte de
baixo – pateta, idiota, parvo, tolo), ou tacanho (de katan – que tem pequena estatura, acanhado;
pequeno; estúpido, avarento); além de palavras relacionadas a questões
financeiras, como cacife,
derivada dekessef = dinheiro.
Dezenas de nomes
próprios têm origem hebraica
bíblica, como: Adão, Abraão, Benjamim, Daniel, Davi, Débora, Elias, Ester,
Gabriel, Hiram, Israel, Ismael, Isaque, Jacó, Jeremias, Jesus, João, Joaquim,
José, Judite, Josué, Miguel, Natã, Rafael, Raquel, Marta, Maria, Rute, Salomão,
Sara, Saul, Simão e tantos outros. Alguns destes, na verdade, são nomes
aramaicos, oriundos da Mesopotâmia, como Abraão (Avraham), que se
incorporaram ao léxico hebraico no início da formação do povo hebreu.
Podemos citar centenas de nomes
e sobrenomes de judaizantes e
números de seus dossiês, desde a instalação da Inquisição no Brasil, a partir
dos arquivos da Torre do Tombo, em Lisboa, e de livros como Wiznitzer (1966),
Carvalho (1982), Falbel (1977), Novinsky (1983), Dines (1990), Cordeiro (1994),
etc. Sobrenomes muito comuns, tanto no Brasil como em Portugal, podem ser
atribuídos a uma origem sefardita, já que uma das características marcantes das
conversões forçadas era a adoção de um novo nome. Muitos conversos adotaram
nomes de plantas, animais, profissões, objetos, etc., e estes podem ser
encontrados em famílias brasileiras, até hoje, em número tão grande que seria
difícil enumerá-los. Exemplos: Alves, Carvalho, Duarte, Fernandes, Gonçalves,
Lima, Silva, Silveira, Machado, Paiva, Miranda, Rocha, Santos, etc. Não devemos
excluir a possibilidade da existência de outros sobrenomes portugueses de
origem judaica.
Porém é importante ressaltar que não se pode afirmar que todo
brasileiro cujo sobrenome conste dos processos seja descendente direto de
judeus portugueses; para se ter certeza é necessária uma pesquisa profunda da
árvore genealógica das famílias.
Há ainda algumas palavras e expressões oriundas do misticismo
judaico, tão desenvolvido na idade média. O estudo do Talmud e da Cabalá trouxe também contribuições do
aramaico, como a conhecida expressão “abracadabra”, que é tida
pela nossa cultura como uma “palavra mágica” (num sentido fabuloso), mas que,
na realidade pode ser traduzida como “criarei à medida que falo” (num sentido
real e sólido para a cultura judaica).
Algumas palavras também designam práticas judaicas ou formas de
encobri-las, especialmente observável nos costumes alimentares. Por exemplo: os
judeus são proibidos pela Torá de comer carne de porco, porque tem os
cascos fendidos e não rumina, sendo, portanto, impuro. Para simular o abandono
desse princípio e enganar espiões da Inquisição, os cristãos-novos inventaram
as alheiras, embutidos à
base de carne de vitelo, pato, galinha, peru – e nada de porco. Após algumas
horas de defumação já podem ser consumidos. Da mesma forma, peixes “de couro” (sem escamas) não serviam para
consumo.
Passando às expressões, apresento alguns exemplos, sua origem e
explicação:
– “Ficar a ver
navios” – Em 1492 foi
determinado que os judeus que não se convertessem teriam de deixar a Espanha
até ao fim de julho. Centenas de milhares então se fixaram em Portugal. O
casamento do rei D. Manuel com D. Isabel, filha dos Reis Católicos, levou-o a
aceitar a exigência espanhola de expulsar todos os judeus residentes em
Portugal que não se convertessem ao catolicismo, num prazo que ia de Janeiro a
Outubro de 1497. O rei Dom Manuel precisava dos judeus portugueses, pois eram
toda a classe média e toda a mão-de-obra, além da influência intelectual. Se
Portugal os expulsasse logo como fez a Espanha, o país passaria por uma crise
terrível. Na realidade D. Manuel não tinha qualquer interesse em expulsar esta
comunidade, que então constituía um destacado elemento de progresso nos setores
da economia e das profissões liberais. A sua esperança era que, retendo os
judeus no país, os seus descendentes pudessem eventualmente, como cristãos,
atingir um maior grau de aculturação. Para obter os seus fins lançou mão de
medidas extremamente drásticas, como ter ordenado que os filhos menores de 14
anos fossem tirados aos pais a fim de serem convertidos. Então fingiu marcar
uma data de expulsão na Páscoa. Quando chegou a data do embarque dos que se
recusavam a aceitar o catolicismo, alegou que não havia navios suficientes para
os levar e determinou um batismo em massa dos que se tinham concentrado em
Lisboa à espera de transporte para outros países. No dia marcado, estavam todos
os judeus no porto esperando os navios que não vieram. Todos foram convertidos
e batizados à força, em pé. Daí a expressão: “ficaram a ver navios”. O rei
então declarou: não há mais judeus em Portugal, são todos cristãos
(cristãos-novos). Muitos foram arrastados até a pia batismal pelas barbas ou
pelos cabelos.
– “Pensar na
morte da bezerra”: frase tão comumente dita por sertanejos quando querem
referir-se a alguém que está meditando com ares de preocupação: “está pensando
na morte da bezerra”. Registram as denunciações e as confissões feitas ao Santo
Oficio, a noção popular, naquele distante período, do que seria o livro
fundamental do judaísmo: a Torá. De Torá veio Toura e depois, bezerra, havendo inclusive quem
afirmasse ter visto em cara de alguns cristãos-novos, o citado objeto, com
chifres e tudo.
– “Passar a mão
na cabeça”, com o sentido de perdoar ou acobertar erro cometido por algum
protegido, é memória da maneira judaica de abençoar de cristãos-novos, passando
a mão pela cabeça e descendo pela face, enquanto pronunciava a bênção.
– Seridó, região no Rio Grande
do Norte, tem seu nome originário da forma hebraica contraída: Refúgio dele.
Porém, não é o que escreve Luís da Câmara Cascudo, indicando uma origem
indígena do nome da região, de “ceri-toh”. Em hebraico, a palavra Sarid significa sobrevivente.
Acrescentando-se o sufixo ó,
temos a tradução sobrevivente dele. A variação Serid, “o que escapou”,
pode ser traduzido também por refúgio. Desse modo, a tradução para o nome seridó seria refúgio dele ou seus
sobreviventes.
– Passar mel na boca: quando da circuncisão,
o rabino passa mel na boca da criança para evitar o choro. Daí a origem da
expressão: “Passar mel na boca de fulano”.
– Para o santo: o hábito sertanejo de,
antes de beber, derramar uma parte do cálice, tem raízes no rito hebraico
milenar de reservar, na festa de Pessach (Páscoa), um copo de vinho para o
profeta Elias (representando o Messias que virá, anunciado pelo Profeta Elias).
– “Que massada!” –usada para se referir a uma tragédia
ou contra-tempo, é uma alusão à fortaleza de Massada na região do Mar Morto, Israel, reduto
de Zelotes, onde
permaneceram anos resistindo às forças romanas após a destruição do Templo em
70 d.C., culminando com um suicídio coletivo para não se renderem, de acordo
com relato do historiador Flávio Josefo.
– “Pagar siza” significando pagar imposto vem do
hebraico e do aramaico (mas =
imposto, em hebraico de misa,
em aramaico).
– “Vestir a
carapuça” ou “a carapuça serve para ...” vem da Idade Média inquisitorial,
quando judeus eram obrigados a usar chapéus pontudos (ou com três pontas) para
serem identificados.
– “Fazer mesuras” origina-se na reverência à Mezuzá (pergaminho com versículos de DT.6,
4-9 e 11,13-21, afixado, dentro de caixas variadas, no batente direito das
portas).
– "Deus te
crie" após o espirro de
alguém é uma herança judaica da frase Hayim
Tovim, que pode ser traduzido como tenha uma boa vida.
– “Pedir a
bênção” aos pais, ao sair e
chegar em casa, é prática judaica que remonta à benção sacerdotal bíblica, com
a qual pais abençoam os filhos, como no Shabat e no Ano Novo.
– “Entrar e sair
pela mesma porta traz felicidade” bem
como o costume de varrer a
casa da porta para dentro, costume arraigado até os dias de hoje, para “não
jogar a sorte fora” é uma camuflagem do respeito pelaMezuzá, afixada nos
portais de entrada, bem como aos dias de faxina obrigatória religiosa judaica,
como antes do Shabat (Sábado, dia santo de descanso
semanal) e de Pessach.
– “Apontar
estrelas faz crescer verrugas nos dedos” era
a superstição que se contava às crianças para não serem vistas contando
estrelas em público e denunciadas à Inquisição, pois o dia judaico começa no
anoitecer do dia anterior, ao despontar das primeiras estrelas, dado necessário
para identificar o início do Shabat e dos feriados judaicos.
Para concluir, gostaria de mencionar um tema polêmico decorrente
deste intercâmbio cultural-religioso: sua influência no português, em vocábulos
que adquiriram uma conotação pejorativa e negativa. Os mais discutidos são: judeu, significando usurário, o
verbo judiar (e o substantivo judiação) com o sentido de maltratar,
torturar, atormentar. Seja sua origem a prática de “judaizar” (cristãos-novos
mantendo judaísmo em segredo e/ ou divulgando-o a outros), seja como referência
ao maltrato e às perseguições sofridas pelos judeus durante a Inquisição, o
fato é que, sem dúvidas, sua conotação é negativa, e cabe a nós estudiosos do
assunto e vítimas do preconceito, esclarecer a população e a mídia, alertando e
visando à erradicação deste uso, não só pelo desgastado “politicamente
correto”, que leva a certos exageros, mas para uma conscientização do eco
subliminar de um longo passado recente, Pelo qual não basta o pedido de perdão,
se não conduzir a uma mudança no comportamento social.
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